O Ceptro de Aerzis

Inês Botelho: uma voz literária a distinguir

O diálogo com Inês Botelho fluiu de forma agradável, de uma leveza, direi, de quem usa do dom da partilha. Quando a conheci, na apresentação do terceiro livro da trilogia O Ceptro deAerzis, fiquei presa à frase com a qual a escritora concluiu. Em forma de apelo e com a dignidade de quem criou de forma artística, e sabe já estar a separar-se da sua obra, Inês Botelho entregou o seu último livro, afirmando que a sua obra, agora, já não lhe pertencia exclusivamente.

Compreende-se o tom saudosista da autora que, se por um lado, vê um sonho concretizado, por outro, sente o vazio da entrega. «Não ficaram segredos. Entreguei-vos tudo», referiu Inês Botelho. Enquanto leitora do infantojuvenil, devo dizer que fico feliz por tal ter acontecido, pois narrativas tão belas como estas não devem ficar escondidas numa qualquer gaveta, reduzidas ao esquecimento.

O primeiro livro teve vendas consideráveis, na média de 7500 volumes vendidos desde a primeira edição, em 2003 (dados fornecidos pelo Departamento Comercial da Gailivro), o segundo não desmentiu o sucesso do seu antecessor e o terceiro, pelo que verifiquei no momento do lançamento do livro, não ficará em desvantagem.

A trilogia O Ceptro de Aerzis compõe-se de elfos, duendes, fadas, gnomos, sacerdotisas e outras criaturas do mundo mágico que se harmonizam no dever da partilha de ensinamentos e aprendizagens sobre a amizade, o amor, o culto do belo, o reencontro com as origens e a dedicação à Terra-Mater. A importância dos laços de consanguinidade entre três mulheres: Ailura, Galaduinne e Iruvienne, ao longo das diferentes gerações, bem como o respeito da autora pela cultura celta ─ que se faz sentir ao longo das três obras ─  provocam no leitor um sólido compromisso com toda a obra.  

É de facto verdade, e como afirma o filósofo e escritor Paulo Loução, no prefácio do terceiro volume, que «Inês Botelho usa de um dom inato para criar». Contudo, a autora não nega, por exemplo, influências de Marion Zimmler Bradley, nem poderia fazê-lo, pois compreendemos que, dada a sua jovem idade e à sua já empreendedora produção literária, a autora esteve, desde cedo, em contacto com obras que lhe permitiram enriquecer as suas competências enciclopédica e literária, bem como conseguir a tão desejada cooperação interpretativa com os seus jovens leitores, criando verdadeiros momentos de literariedade e poeticidade com aqueles que revalorizam as antigas histórias de fadas que adormeceram em tranquilidade crianças do mundo inteiro.

A trilogia O Ceptro de Aerzis é, sem qualquer dúvida, mais uma apologia ao míticossimbólico reavivado em obras para os mais jovens. Se a questão se baliza entre um desejo ainda pouco definido da diferença ou a vontade da descoberta, por parte dos mais jovens? Bem, não sei ao certo onde ficará o equilíbrio para uma resposta adequada. O certo, é constatar, como já o referi num outro texto a propósito do sucesso incontestável da saga Harry Potter, de J. K. Rowling, que os nossos jovens querem e sabem ler e não devemos, sobretudo afastá-los, por ignorância nossa, de leituras que consideramos marginais só porque nelas figuram elementos do fantástico, do maravilhoso ou temáticas ligadas ao Imaginário. Mal de nós se acreditássemos que o texto literário é uma cópia do mundo empírico e histórico-factual, pois o princípio da pluri-isotopia ou da polissemia não poderia efetuar-se. Necessário é, pois, saber distinguir a qualidade dos textos e compreender a sua natureza estética para que o momento da fruição seja total.

Responsabilizar e consciencializar o leitor mais jovem é também uma tarefa que requer paciência e sapiência, pois o leitor-literário não se faz de um dia para o outro. Este deve, antes de tudo, ser um sujeito usuário de um vasto conjunto de narrativas, ouvidas ou lidas, que lhe permitirão abolir a imagem do texto enquanto unidade estanque e hermética. Desta forma, o texto será compreendido como um espaço de transgressão para que aconteçam verdadeiros momentos de literariedade, na realização do policódigo literário. Refiro assim uma visão singular, onde os momentos de estranhamento obrigam à reflexão e, consequentemente, à interacção.

Parece-me ser da competência da crítica literária, e mais uma vez referencio Paulo Loução, apadrinhar O Ceptro de Aerzis de Inês Botelho como uma obra literária que permite leituras plurais e convida à participação de um leitor enquanto sujeito cognoscente. É muito interessante constatar a patente evolução estética da autora, de livro para livro, o que é, por si só, uma referência de qualidade para a trilogia. Acrescentarei, ainda, que a obra com a qual fomos presenteados encerra o reencontro com matrizes de referência comuns e intertextuais às quais podemos acrescentar, enquanto leitores cooperantes, novas vozes, permitindo, assim, uma verdadeira leitura de promoção estética na divulgação do trajecto antropológico e hermenêutico-simbólico do imaginário, bem patente no fluir da pena de Inês Botelho.

 2006, in Mediadores, Livros e Leitores

Anterior
Anterior

Conversa sobre livros

Próximo
Próximo

Isabel Allende para os mais jovens